terça-feira, 11 de março de 2014

Turista ou viajante?


Já vi muita gente falando sobre esse assunto, já me peguei mil vezes falando sobre isso, que tal programa era turístico demais ou que tal lugar tinha gente demais, aqui na viagem é pauta praticamente diária e todo dia sempre vem um puxar papo comigo sobre isso. Viajante ou turista? Por que não os dois? Sou viajante com cara de turista atualmente, já fui turista em muitas e muitas ocasiões, me formei em turismo na universidade, muito embora nunca tenha atuado efetivamente mas, sobretudo, sou uma pessoa bastante estranha e complexa, curiosa e preguiçosa, aberta e fechada, animada e cansada, pobre e rica, bonita e feia, feliz e triste, sou de tudo um pouco ao mesmo tempo e ainda assim não me taxo por isso ou aquilo. Prefiro me ser e, voilá, já anda tão difícil ser a gente mesmo, não é?

No fundo, penso que não há diferença alguma entre turista e viajante, entre eu e você, entre o seu amigo rico ou o seu colega europeu mochileiro. Estamos todos no mesmo balaio, no tempo presente, e o maior desafio está bem longe de simplesmente conseguirmos dar um nome melhor pra qualquer coisa que seja. Turista é isso, viajante é aquilo, somos todos gente (e todos tínhamos que ter consciência de que o simples fato de viajar nos dias de hoje já é um privilégio de poucos...). Um tanto de gente procurando algo novo, procurando o diferente, procurando o encontro com qualquer coisa que seja, o reencontro consigo mesmo, um tanto de gente com motivações ímpares e um dinheiro que caiba no bolso para explorar. Nessa viagem, já tive dias de rico, já fui pobre por opção em quartos coletivos e restaurantes baratos, já fui trapaceado por taxistas e vendedores, nunca tenho certeza do que estou fazendo, sou viajante por um certo tempo e nunca fui tão turista na minha vida. Quanto mais viajo, mais me sinto perdido. Li esse texto que colocaram no colo da Cecília Meireles, confesso que não procurei afundo se é de sua autoria ou não, mas bem cabe à discussão.

"Grande é a diferença entre o turista e o viajante.

O primeiro é uma criatura feliz, que parte por este mundo com a sua máquina fotográfica a tiracolo, o guia no bolso, um sucinto vocabulário entre os dentes: seu destino é caminhar pela superfície das coisas, como do mundo, com a curiosidade suficiente para passar de um ponto a outro, olhando o que lhe apontam, comprando o que lhe agrada, expedindo muitos postais, tudo com uma agradável fluidez, sem apego nem compromisso, uma vez que já sabe, por experiência, que há sempre uma paisagem por detrás da outra, e o dia seguinte lhe dará tantas surpresas quanto a véspera.

O viajante é criatura menos feliz, de movimentos mais vagarosos, todo enredado em afetos, querendo morar em cada coisa, descer à origem de tudo, amar loucamente cada aspecto do caminho, desde as pedras mais toscas às mais sublimadas almas do passado, do presente e até do futuro – um futuro que ele nem conhecerá. O turista murmura como pode o idioma do lugar que atravessa, e considera-se inteligente e venturoso se consegue ser entendido numa loja, numa rua, num hotel.

O viajante dá para descobrir semelhanças e diferenças de linguagem, perfura dicionários, procura raízes, descobre um mundo histórico, filosófico, religioso e poético em palavras aparentemente banais; entra em livrarias, em bibliotecas, compra alfarrábios, deslumbra-se a mirar aqueles foscos papéis e leve, para tomar um apontamento, mais tempo que o turista em percorrer uma cidade inteira. Quando lhe dizem que há sol, que o dia é belo, que é preciso sair do hotel, caminha como empurrado, cheio de saudade daqueles alfabetos, daqueles misteriosos jogos de consoantes, daquelas fantasmagorias das declinações.

Porta-se diante de um monumento, e começa outra vez a descobrir coisas: é um pedaço de coluna, é uma porta que esteve noutro lugar, é uma estátua cuja família anda dispersa pelo mundo, é o desenho de uma janela, é a cabeça de um anjo que lhe conta sua existência, são as figuras que saem dos quadros e vêm conversar sobre as relações entre a vida e a pintura, é uma pedra que o arrebata para o seu abismo interior e o cativa entre suas coloridas paredes transparentes.

O turista já andou léguas, já gastou a sola dos sapatos e todos os rolos da máquina – e o viajante continua ali, aprisionado, inerme, sem máquina, sem prospectos, sem lápis, só com os seus olhos, a sua memória, o seu amor".

Na minha viagem, já fiz de tudo um pouco e talvez não seja nem viajante e nem turista, mas possivelmente os dois ao mesmo tempo. Sou também escritor, tem vezes, aluno em outras, já fui guia de turistas perdidos, tenho sido corajoso na maioria das ocasiões, mas tenho uma pitada de medo sempre também, me sinto constantemente perdido em qualquer lugar novo que eu piso, mas estou bem disposto e entregue ao tempo presente, evidentemente cheio de amor. É preciso respeito, respeito, respeito, três vezes pra jamais esquecer. Fiz mais amigos turistas do que viajantes. Não acho legal essa história de viajante ter que, por obrigação, gastar menos que turista. Não acho legal isso de ser perguntado todos os dias sobre o preço das coisas e ver todo mundo achando tudo muito caro. Não gosto do olhar torto de alguns com o meu mochilão sujo dentro de um hotel boutique, não gosto que me achem novo demais para o que fiz nos últimos anos ou velho demais para o que estou fazendo. Alguns ainda me dizem loucos por ter largado tudo. Ou quase tudo. Talvez, no final das contas, a felicidade seja igual pra todo mundo, independente do dinheiro que se gasta, da distância que se viaje, do tipo de viagem que se faça, porque aqui não se trata de esquerda e direita, muito embora quase tudo no mundo o seja, não se trata do preconceito recíproco que sempre vejo por aí, se trata apenas de realizar ou tocar em algo ainda escondidinho lá no fundo do útero. E tão somente. Por que achar bobagem isso de querer viajar mais barato? Por que não respeitar os outros turistas que estão ao mesmo tempo que você no templo mais visitado da cidade? Afinal, escolhemos isso pra gente e essa escolha exige muita paciência, e que assim seja, então. 

Hoje pela manhã, fui à Embaixada da Índia e me mandaram três vezes de volta para a mesma fila por um erro deles. Eu sabia e talvez no Brasil ficasse nervosinho e com raiva, talvez fosse reclamar com alguém, mas estou aqui do outro lado do mundo sem ninguém, só comigo e com essa meia dúzia de bons corações que cruzei, achei melhor respirar fundo, sorrir e escrever um pouquinho porque amanhã a viagem sempre continua. Tinha tanto turista quanto viajante lá na Embaixada, no clichê máximo da questão, e ambos, nessa hora, não passam de estrangeiros. Fora de casa, a gente acaba sendo apenas isso: um estranho. Nem todo lugar vai ter um motorista de tuk-tuk legal e que goste de filmes pornôs, nem sempre você vai conhecer muita gente quanto acha que poderia, volta e meia sempre aparecerá um chato de galocha à sua frente, nem todo templo será lindo como o primeiro que você viu, nem toda ilha será paradisíaca, nem todo monge será sorridente e gentil, nem todo viajante será legal, tampouco os turistas, uma hora vai chover, uma hora você vai cansar e querer apenas dormir, uma hora você vai se culpar por estar num hotel mais caro, em outras vai se achar o cocô do cavalo do bandido por estar em um hostel, nem sempre haverá festas e sorrisos e nem toda criança terá um sorriso mau humorado e lindo no rosto como essa da foto. Bom mesmo é saber, ao menos, que bem lá no fundo existem mesmo apenas dois tipos de turistas ou viajantes: os babacas e os não babacas. Os meus amigos são todos lindos, talvez não por escolha, mas por apenas serem, o que lhes basta, e na semana que vem estou indo para a Índia com mais alguns deles ou talvez faça novos, ainda não sei. Nos vemos por aí. Ou você deixaria de ir ver o Taj Mahal por que tem muito turista?

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